Um advogado do diabo de maus bofes talvez se sentisse tentado a invocar a idade de Lago — 76 anos—para reduzir a pó seu diagnóstico a golpes desrespeitosos de "isso é coisa de velho". Só que não é: brasileiras e brasileiros das mais diversas condições e idades, entre uma cotovelada e outra, assinam embaixo da teoria segundo a qual no tur-bilhão das grandes cidades não sobra cabeça, nem lugar, nem tempo, nem mesmo dinheiro, para que se possa praticar como exercício diário o mandamento "respeitai-vos uns aos outros". E não faltará quem se pergunte-na improvável hipótese de parar para pensar no assunto, que serventia podem ter as chamadas
boas maneiras no mundo atual.
Não seriam elas um anacronismo com cheiro de naftalina, algo como uma cartola ou um par de anáguas na era do jeans-e-tênis? A própria expressão
boas maneiras soa maneirismos, ademanes, rapapés, salamaleques—em suma, frescuras de tempos idos com perdão da má palavra. Essa, porém, é apenas a primeira de uma longa lista de confusões e mal-entendidos que desfiguram a questão e favorecem o mau comportamento. E comum colocar no mesmo saco
boas maneiras e rituais de
etiqueta—como se tratar bem o próximo e saber qual o talher apropriado para comer peixe fossem rigorosamente a mesma coisa. Na realidade, há um mundo de diferenças.
O que se chama
etiqueta e um conjunto de cerimoniais surgido na Europa há uns cinco séculos para pôr as pessoas nos seus devidos lugares, ou seja, para mostrar quem era nobre e quem era plebeu. Já as
boas maneiras são formas de agir que lubrificam o convívio em sociedade ao permitir que as pessoas se entendam, independentemente de quaisquer diferenças entre elas. Não foi por outra razão que se desenvolveram de mãos dadas com o aumento do padrão cultural nos países industriais e no mesmo passo em que se difundiu a idéia da igualdade de direitos entre os homens. Apesar disso, nada mais freqüente do que fazer das
boas maneiras um sinalizador das diferenças sociais.
A professora de Filosofia Terezinha Azeredo Rios, da PUC de São Paulo, que está preparando uma tese sobre o assunto, conta um episódio exemplar: "Certo dia, tomei um táxi e pedi ao motorista que me levasse à faculdade. Começamos a conversar e ele me tratava por “você”. Em dado momento, perguntou o que eu estava estudando. Pois bem: a partir do momento em que respondi que não era aluna mas professora, ele passou a me chamar de “senhora “. Isto é, o motorista em questão deve achar, como tanta gente, que boa
educação é algo que convém reservar para a pessoas situadas em degraus mais altos da escada social, como uma roupa que só se usa em ocasiões especiais.
Confundidas como forma de servilismo (quando praticadas de baixo para cima) ou como máscara da opressão (quando exercidas de cima para baixo), as pobres
boas maneiras acabaram impiedosamente arrastadas ao banco dos réus da revolução nos
costumes que explodiu nos anos 60. E ali, de cambulhada com hábitos arcaicos e de fato inibidores da naturalidade nas relações humanas—como a secular obrigação imposta aos filhos de só chamar o pai de senhor—. rolaram comportamentos os mais inocentes e civilizados—como o homem abrir a porta de um carro para a mulher—, acusados, por exemplo, de ser vir de disfarce hipócrita à dominação machista. O resultado foi um breu geral.
"Traumatizadas pela idéia de repressão, as pessoas resolveram educar os filhos de forma diferente da que foram educadas", observa a advogada e autora feminista Sílvia Pimental, de São Paulo. "Derrubaram-se padrões considerados repressores e muitas vezes não se conseguiu colocar outros no lugar. Isso pode ter provocado uma certa baixa no comportamento dos jovens." Num recente fim de tarde, uma dúzia de alunos de um colégio progressista da zona oeste paulistana infernizava com seus gritos e cantorias a vida dos passageiros do ônibus em que viajavam. E nem sequer tomaram conhecimento do protesto de uma passageira que se levantou para reclamar que "depois de um dia de trabalho tenho o direito de ir para casa em silêncio".
É possível que tenha razão o professor Haroldo Meira Teixeira Júnior, que dirige o Curso Anglo Vestibulares e nessa condição convive diariamente com multidões de adolescentes. Diz ele: "No meu tempo os jovens eram muito mais educados, mas o mundo também era muito melhor". Só que fica difícil o mundo melhorar se não se entender que as
boas maneiras começam no respeito humano e são exercidas de pessoa para pessoa, desde o trato com as empregadas em casa até o plano geral na sociedade", como lembra muito seriamente o humorista Millôr Fernandes, fino observador da cena brasileira.
Certamente não comete delito algum o cidadão que, ao sair para o trabalho, mal encara o vizinho com quem divide o espaço no elevador. Afinal, adverte o antropólogo José Guilherme Cantor Magnani, da USP, "não se pode esperar que num edifício de apartamentos, onde cada qual vive sua vida, as pessoas se tratem com o afeto e a cordialidade de vizinhos de cidade do interior". O problema é que o ato de ignorar o companheiro de viagem na breve jornada de um décimo andar ao térreo costuma ser a expressão literal de outra cegueira: o comportamento que consiste em não enxergar os direitos dos companheiros de vida em sociedade.
De alguma forma, as
boas maneiras abrem os olhos de cada um para o mundo em volta—e para as pessoas que o habitam. Promovem a tolerância e previnem atritos, como chumaços de algodão entre cristais: é sempre mais difícil agredir alguém a quem se acabou de desejar bom dia ou pedir um favor—e a recíproca, naturalmente, é verdadeira. Levadas às últimas conseqüências,
boas maneiras salvam vidas—as estatisticas de acidentes de transito no Brasil seriam com certeza menos sangrentas se os motoristas cessas-sem de atropelar os direitos dos demais motoristas e, sobretudo, dos pedestres. E, ao contrário do que imaginavam os contestadores de vinte anos atrás, os bons modos, longe de serem modos disfarçados de dominar o próximo, funcionam a favor da parte mais fraca numa situação de conflito. Qualquer criança sabe disso — literalmente.
O que se convencionou chamar qualidade de vida nas sociedades modernas depende diretamente da prática habitual das
boas maneiras, mesmo quando não envolvem relações pessoa a pessoa. É maior a qualidade de vida onde as pessoas têm a boa
educação de não atirar coisas pela janela do carro—ou onde serão multadas se o fizerem. Recentemente, o jornalista Zózimo Barroso do Amaral registrou em sua coluna no Jornal do Brasil, com admiração, o caso de uma moça, por sinal muito bonita, que se deu ao trabalho de limpar o cocô que seu cachorrinho tinha acabado de fazer no calçadão de Ipanema — algo que devia ser rotina e não notícia.
Ninguém deixa cascas de banana largadas no chão da sala de visitas. Fora de casa, porém, é outra conversa; os outros que se danem, como dizem os mais grossos. "As
boas maneiras são prejudicadas quando as pessoas não consideram o que é coletivo, público, também como seu e cuidam apenas do que é particular, exclusivo", diz a socióloga Laura Tetti, da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo. "Para manter uma praça limpa, você tem de mandar escrever nos cestos de lixo o lembrete “Cuide como se fosse seu”. Se é de todos. não se deve cuidar?" Inimiga ainda maior das
boas maneiras e, portanto, da coexistência pacífica em sociedade é a esperteza—a atitude que parte do princí-pio de que com bons modos não se consegue nada e termina no jeitinho de quem busca conseguir sempre alguma vantagem sobre os demais.
Esse modo de proceder obedece ao que se pode chamar de Lei de Gérson, em alusão ao anúncio de uma marca de cigarros veiculado no final de 1976, no qual o meia-esquerda da seleção tricampeã mundial se vangloriava de "levar vantagem em tudo". Diga-se em defesa de Gérson que ele garante não agir assim na vida real. "Tanto que se a campanha tivesse a intenção que depois lhe atribuiram eu não teria participado dela “, afirma. seja como for, o respeito humano vai por água abaixo sempre que, na busca da vantagem a qualquer preço, "tenta-se transformar procedimentos imorais em algo moralmente correto e socialmente desejável, nas palavras do publicitário paulista Roberto Duailibi.
Para ele, por sinal, a "propaganda Macunaína como diz, aquela que pretende enganar o consumidor, é a forma pela qual a malandragem aparece no seu ramo de atividade. A vida econômica é onde mais se faz sentir a caça às vantagens, abatendo pelo caminho as normas de boa
educação a golpes de borduna. "As pessoas já saem de casa como se estivessem partindo para uma guerra". compara Dílson Funaro, o empresário de fino trato que como ministro da Fazenda lançou o Plano Cruzado para acabar com a inflação, a seu ver a causa número 1 dessa guerra. Em tal clima, uma simples compra pode transformar-se numa escaramuça, se vendedores e compradores não se derem o devido desconto das
boas maneiras.
"Por causa da situação econômica, o relacionamento nas lojas está tensionado", atesta Raul Sulzbacher, presidente do Clube dos Lojistas do Shopping Iguatemi, de São Paulo. “0 vendedor, que não consegue viver com seu salário, descarrega sua insatisfação no cliente.” Para quem acha que misturar economia com
educação é forçar demais a barra dos fatos, o ex-ministro Funaro tem uma resposta pronta na gaveta. Trata-se de uma carta que recebeu de um motorista de táxi no auge da euforia do Cruzado. "Agora que o dinheiro vai valer", escreveu-lhe o motorista, "vou respeitar os sinais de transito."
Mas é verdade também que a astúcia do jeitinho, o drible com que se quer passar para trás os direitos do próximo, como a sagrada norma de que deve ser atendido primeiro quem primeiro chegou, existe igualmente em tempos de vacas gordas. "É uma estratégia de sobrevivência causada pela desigualdade de direitos entre as pessoas na vida diária", define o cientista social Paulo Sérgio Pinheiro, da USP. "Fura-se uma fila para ter um mínimo de direitos." Pode ser. Certamente não faltarão motivos para explicar os desrespeitos cotidianos às normas da convivência civilizada. Mas não adiantará muito esperar que essas causas se evaporem para só então implantar o reino das
boas maneiras. É até uma questão de bom senso. A psicóloga Maria José Néri, do Centro de Controle do Stress, de Campinas, nota que "quem tem o costume de revidar à falta de
boas maneiras dos outros acaba chegando em casa de noite com os nervos em frangalhos". E ensina: "Quem mantém a boa
educação acaba levando vantagem".
Obrigado pela atenção.
No século XV, quando se instalavam os Estados nacionais e a monarquia absoluta na Europa,nãohavia sequer garfos e colheres nas mesas de refeição: cada comensal trazia sua faca para cortar um naco da carne— e, em caso de briga, para cortar o vizinho. Nessa Europa bárbara, que começava a sair da Idade Média, em que nem os nobres sabiam escrever., o poder do rei devia se afirmar de todas as maneiras aos olhos de seus súditos” como uma espécie de teatro. Nesse contexto surge a etiqueta, marcando momento a momento o espetáculo da realeza: só para servir o vinho ao monarca havia um ritual que durava até dez minutos. Quando Luis XV, que reinou na França de 1715 a 1774, passou a usar lenço não como simples peça de vestuário, mas para limpar o nariz, ninguém mais na corte de Versalhes ousou assoar-se com os dedos, como era costume. Mas todas essas regras, embora servissem para diferenciar a nobreza dos demais, não tinham a petulância que a etiqueta adquiriu depois", compara o filósofo Renato Janine Ribeiro, da USP, autor de um estudo sobre o assunto. "Os nobres usavam as boas maneiras com naturalidade, para marcar uma diferença política que já existia. E representavam esse teatro da mesma forma para todos. Depois da Revolução Francesa, as pessoas começam a aprender etiqueta para ascender socialmente." Daí por que ela passou a ser usada de forma desigual—só na hora de lidar com os poderosos. Uma palavrinha à-toa
Um certo reverendo Creary, que andou pelo Brasil em 1861, registrou em seu diário: "As brasileiras, ao contrário das inglesas, não desmaiam se pronunciamos a palavra “colo” ou “perna” ". O fato chamou-lhe a atenção porque na boa sociedade vitoriana da Inglaterra, de onde vinha o reverendo, não se falava nem em perna de mesa, pois a palavra "perna", por suas abusões eróticas, estava banida das conversas educadas. Era um palavrão. Já no Portugal dos séculos XVI a XIX, homem que não falasse palavrão nem fizesse gestos obscenos tinha a virilidade posta em dúvida. O palavrão, em toda parte, sempre foi retirado do vocabulário relacionado com a sexualidade e com as funções excretoras—dai ser incompatível com a boa educação. Pelo mesmo motivo que fez surgir os banheiros. "Mas toda palavra depreciativa também pode ser considerada palavrão", diz o lingüista Fervia di Giorgi, de São Paulo. Hoje em dia, como se sabe, o palavrão começa a ser admitido na conversa normal, sem distinção de sexo. Em parte, isso se deve ao fato de haver diminuido a distancia social entre a casa e a rua. Antigamente, as fronteiras entre uma e outra batizavam rigidamente os comportamentos — coisas ditas e feitas lá fora não eram toleradas no lar. Tão importante como isso foi a mudança na linguagem falada, que perdeu o tom formal de outrora. Infiltrando-se nas conversas, como gíria ou interjeição, o palavrão foi perdendo o estigma de coisa escandalosa e feia. Falado com naturalidade, deixou de ofender. Virou uma palavrinha à toa—mesmo assim, a reação de quem ouve é que deve guiar a atitude de quem fala. Essa é uma boa maneira de lidar com o problema.