Qual é o lugar mais importante da sua
casa? Eu acho que essa é uma boa pergunta para início de uma sessão de
psicanálise. Porque quando a gente revela qual é o lugar mais importante da
casa, a gente revela também o lugar preferido da alma. Nas Minas Gerais onde
nasci o lugar mais importante era a cozinha. Não era o mais chique e nem o mais
arrumado. Lugar chique e arrumada era a sala de visitas, com bibelôs, retratos
ovais nas paredes, espelhos e tapetes no chão. Na sala de visitas as crianças
se comportavam bem, era só sorriso e todos usavam máscaras. Na cozinha era
diferente: a gente era a gente mesmo, fogo, fome e alegria.
“Seria tão bom, como já foi...", diz a
Adélia. A alma mineira vive de saudade. Tenho saudade do que já foi às velhas
cozinhas de Minas, com seus fogões de lenha, cascas de laranja secas,
penduradas, para acender o fogo, bule de café sobre a chapa, lenha crepitando
no fogo, o cheiro bom da fumaça, rostos vermelhos. Minha alma tem saudades
dessas cozinhas antigas...
Fogo de fogão de
lenha é diferente de todos os demais fogos. Veja o fogo de uma vela acesa sobre
uma mesa. É fogo fácil. Basta encostar um fósforo aceso no pavio da vela para
que ela se acenda. Não é preciso nem arte nem ciência. Até uma criança sabe. Só
precisa um cuidado: deixar fechadas as janelas para que um vento súbito não
apague a chama. O fogo do fogão é outra coisa. Bachelard notou a diferença:
"A vela queima só. Não precisa de auxílio.
A chama solitária
tem uma personalidade onírica diferente da do fogo na lareira. O homem, diante
de um fogo prolixo pode ajudar a lenha a queimar, coloca uma acha suplementar
no tempo devido. O homem que sabe se aquecer mantém uma atitude de Prometeu.
Daí seu orgulho de atiçador perfeito..." Fogo de lareira é igual ao fogo
do fogão de lenha. Antigamente não havia lareiras em nossas casas. O que havia
era o fogo do fogão de lenha que era, há um tempo, fogo de lareira e fogo de
cozinhar.
As pessoas da
cidade, que só conhecem a chama dos fogões a gás, ignoram a arte que está por
detrás de um fogão de lenha aceso. Se os paus grossos, os paus finos e os
gravetos não forem colocados de forma certa, o fogo não pega. Isso exige
ciência. E depois de aceso o fogo é preciso estar atento. É preciso colocar a
acha suplementar, do tamanho certo, no lugar certo. Quem acende o fogo do fogão
de lenha tem de ser também um atiçador.
O fogão de lenha
nos faz voltar "às residências de outrora, as residências abandonadas, mas
que são, em nossos devaneios, fielmente habitadas" (Bachelard). Exupèry,
no tempo em que os pilotos só podiam se orientar pelos fogos dos céus e os
fogos da terra, conta de sua emoção solitária no céu escuro, ao vislumbrar, no
meio da escuridão da terra, pequenas luzes: em algum lugar o fogo estava aceso
e pessoas se aqueciam ao seu redor.
Já se disse que o
homem surgiu quando a primeira canção foi cantada. Mas eu imagino que a
primeira canção foi cantada ao redor do fogo, todos juntos se aquecendo do frio
e se protegendo contra as feras. Antes da canção, o fogo. Um fogo aceso é um
sacramento de comunhão solitária. Solitária porque a chama que crepita no fogão
desperta sonhos que são sós nossos.
Mas os sonhos solitários se tornam comunhão
quando se aquece e come.
Nas casas de Minas
a cozinha ficava no fim da casa. Ficava no fim não por ser menos importante,
mas para ser protegida da presença de intrusos. Cozinha era intimidade. E
também para ficar mais próxima do outro lugar de sonhos, a horta-jardim. Pois
os jardins ficavam atrás. Lá estavam os manacás, o jasmim do imperador, as
jabuticabeiras, laranjeiras e hortaliças. Era fácil sair da cozinha para colher
xuxús, quiabo, abobrinhas, salsa, cebolinha, tomatinhos vermelhos, hortelã e,
nas noites frias, folhas de laranjeira para fazer chá.
Ah! Como a
arquitetura seria diferente se os arquitetos conhecessem também os mistérios da
alma! Se Niemeyer tivesse feito terapia, Brasília seria outra. Brasília é
arquitetura de arquitetos sem alma. Se eu fosse arquiteto minhas casas seriam
planejadas em torno da cozinha. Das coisas boas que encontrei nos Estados
Unidos nos tempos em que lá vivi estava o jeito de fazer as casas: a sala de
estar, a sala de jantar, os livros, a escrivaninha, o aparelho de som, o
jardim, todos integrados num enorme espaço integrado na cozinha. Todos podiam
participar do ritual de cozinhar, enquanto ouviam música e conversavam. O ato
de cozinhar, assim, era parte da convivência de família e amigos, e não apenas
o ato de comer. Eu acho que nosso costume de fazer cozinhas isoladas do resto
da casa é uma reminiscência dos tempos em que elas eram lugar de cozinheiras
negras escravas, enquanto as sinhás e sinhazinhas se dedicavam, em lugares mais
limpos, a atividades próprias de dondocas como o ponto de cruz, o frivolité, o
crivo, a pintura e a música. Se alguém me dissesse, arquiteto, que o seu desejo
era uma cozinha funcional e prática, eu imediatamente compreenderia que nossos
sonhos não combinavam delicadamente me despediria e lhes passaria o cartão de
visitas de um arquiteto sem memórias de cozinhas de Minas.
As cozinhas de
fogão de lenha não resistiram ao fascínio do progresso. As donas de casa, em
Minas, por medo de serem consideradas pobres, dotaram suas casas de modernas
cozinhas funcionais, onde o limpíssimo e apagado fogão a gás tomou o lugar do
velho fogão de lenha. As cozinhas, agora, são extensões da sala de visitas. Mas
isto é só para enganar. A alma delas continua a morar nas cozinhas velhas,
agora transferidas para o quintal, onde a vida é como sempre foi. Lá é tão bom,
porque é como já foi.
Eu gostaria de serem
muitas coisas que não tive tempo e competência para ser. A vida é curta e as
artes são muitas. Gostaria de ser pianista, jardineiro, artista de ferro e
vidro - talvez monge. E gostaria de ter sido um cozinheiro. Babette, Tita. Meu
pai adorava cozinhar. Eu me lembro dele preparando os peixes, cuidadosamente
puxando a linha que percorre o corpo dos papa-terras, curimbas, para que não ficassem
com gosto de terra. E me lembro do seu rosto iluminado ao trazer para a mesa o
peixe assado no forno.
Faz tempo, num
espaço meu, eu gostava de reunir casais amigos uma vez por mês para cozinhar.
Não os convidava para jantar. Convidava para cozinhar. A festa começava cedo,
lá pelas seis da tarde. E todos se punham a trabalhar, descascando cebola,
cortando tomates, preparando as carnes. Dizia Guimarães Rosa: "a coisa não
está nem na partida e nem na chegada, mas na travessia." Comer é a chegada.
Passa rápido. Mas a travessia é longa. Era na travessia que estava o nosso
maior prazer. A gente ia cozinhando, bebericando, beliscando petiscos, rindo,
conversando. Ao final, lá pelas onze, a gente comia. Naqueles tempos o que já
tinha sido voltava a ser. A gente era feliz.
Sinto-me feliz
cozinhando. Não sou cozinheiro. Preparo pratos simples. Gosto de inventar. O
que mais gosto de fazer são as sopas. Vaca atolada, sopa de fubá, sopa de
abóbora com maracujá, sopa de berinjela, sopa da mandioquinha com manga, sopa
de coentro... Você já ouviu falar em sopa de coentro? É sopa de portugueses
pobres, deliciosa, com muito azeite e pão torrado. A sopa desce quente e,
chegando ao estômago, confirma...
A culinária leva a gente bem próximo das
feiticeiras.
Como a Babette (A festa de Babette) e a Tita (Como água para
chocolate)...
(Correio Popular, Caderno C, 19/03/2000.). RUBEM ALVES
Uma deliciosa leitura! Ele é incrível, Rubem Alves...