A Veneza de Charlie Chaplin
Voltei. Ou melhor, Chaplin voltou. Esta é a oitava vez que participo, fantasiada de Carlitos, do Carnevale de Veneza, a festa que acontece no fim do inverno e dura dez dias. Ter um papel na maior exposição de fantasias da Europa promove a minha presença de observadora a participante e, como Charlie, posso improvisar, interagir e fazer as pessoas sorrirem tendo como pano de fundo a cidade conhecida como La Serenissima, um ponto inigualável na Terra. Brincar livremente na pele de um ícone tão querido num lugar tão bonito pode ser tão gostoso quanto o sabor de um bom gelato.
Já faz pelo menos dez minutos que cruzei com alguém fantasiado - e também em roupas comuns. Como é possível que, no meio de um evento de classe internacional, uma região tão linda da cidade esteja vazia a não ser pela presença de uma norte-americana já de certa idade vestida de Charlie Chaplin? Para falar a verdade, não sei onde estou. Não tenho mapa (o Charlie teria?), embora talvez ele fosse de pouca valia nessas ruelas. Chego a um beco sem saída: a ruazinha em que estou acaba num pequeno canal. Não vejo nenhuma daquelas placas "Per Rialto" ou "Per San Marco" que são o socorro da minha navegação, nas laterais dos prédios. Voltar é a minha única opção. Porém, eu me detenho ali, admirando os tons de ocre e vermelho que cobrem as construções desgastadas pela água e as floreiras nas janelas lotadas de mil-grãos, que começam a voltar à vida bem a tempo para o espetáculo veneziano que resume a graça, o glamour, o mistério e a história europeus.
Num dos canais, vejo uma gôndola solitária. "Negra como nada mais no mundo exceto um caixão" _ é assim que o escritor Thomas Mann descreveu esses barcos elegantes em "A Morte em Veneza". Essa não leva nenhum passageiro, apenas o gondoleiro remando com uma habilidade despreocupada. Ela vai chegar ao lugar onde me encontro em alguns minutos. O que Chaplin faria?
Não sei de onde tirei a inspiração, mas me posicionei de tal forma que, quando a gôndola passou, o gondoleiro me viu como se fosse sua imagem num espelho _ meu corpo tombado para frente no mesmo ângulo que o dele, minha bengala substituindo seu longo remo. Imito seu gesto. Novamente. Aí ele me vê e sorri. O meu Charlie fica exultante.
Conseguir uma reação desses barqueiros tão compenetrados é um triunfo. É o que preciso para voltar, girar minha bengala e sair caminhando num passo animado. Depois de tantos anos me fantasiando como Charlie Chaplin durante o Carnevale, estou me aperfeiçoando. Por que fui tantas vezes para Veneza durante o carnaval? E por que a fantasia de Chaplin? É uma questão de amor _ pela cidade, pelas fantasias (é felicidade pura para a criança interior que habita em nós, tanto que há quem não poupe despesas para criar roupas caríssimas), amor pela oportunidade de ser uma exibicionista sem idade (está nos meus genes; sou parente do comediante Billy Crystal e de um mímico chamado Adam Darius), e, é claro, amor pelo adorável Carlitos, um dos maiores personagens de todos os tempos. Chaplin e eu fazemos aniversário juntos: nós dois nascemos no dia 16 de abril, só que com 62 anos de diferença. É uma conexão auspiciosa que ajuda a justificar a escolha do meu alter ego. Entretanto, Carlitos sempre me afetou, com sua propensão a se meter em encrencas, a forma como se comunica através dos olhos e dos gestos, sua personalidade humilde, suas características físicas (temos praticamente a mesma altura).
Não sou a única a apreciá-lo, como comprova a minha experiência de vários carnavais. O rosto das pessoas sempre se ilumina ao ver Charlie Chaplin. Eu sorrio de volta porque, quando sou Charlie, entretenho e atraio a atenção delas da maneira mais gratificante, sem ter que fazer testes nem seguir um roteiro. Carlitos nasceu num camarim de Hollywood, onde Chaplin resolveu se arriscar usando as roupas _ chapéu coco, paletó, calça larga, sapato, bigode, bengala _ que definiram seu personagem. Eu encontrei o que foi o início do meu personagem, um chapéu coco, no celeiro da fazenda de um amigo em Nova York. Nos anos 30, a propriedade tinha pertencido a um magnata fascinado por moda. Suas camisas, ternos, sapatos e chapéus ainda lotavam o pequeno celeiro, além de um espelho de corpo inteiro. Considerando o tamanho das roupas, o homem era baixinho, mesmo tendo sido um grande comerciante de papelão, segundo me disseram. O chapéu, guardado numa caixa vermelha e azul com alça de couro, parecia novinho em folha. Tive que tirá-lo dali e colocá-lo na minha cabeça. Serviu perfeitamente. Eu me olhei no espelho… e vi Chaplin. Sapatões de amarrar, roupas largas, um bigode e uma bengala seriam a coisa mais fácil de achar.
O meu Chaplin estreou em Washington, no Dia das Bruxas de 1995, quando participei da festa em Dupont Circle. Eu achei que ele ficou perdido e fora de lugar numa multidão de seres sobrenaturais, mas me senti bem como Carlitos _ e, quando um rapaz de terno se aproximou de mim e disse: "Ei, Chaplin, se tivesse um concurso, você ganharia disparado", aí eu me apaixonei. Depois do encontro com o gondoleiro, não demorei a encontrar placas me dirigindo para San Marco. Foi só seguir as flechas _ até que uma figura bela e misteriosa em Campo Santo Stefano me fez diminuir o passo até parar. Pus o corpo para frente, com as duas mãos apoiadas na bengala, os dedões dos pés virados para cima, a cabeça inclinada no mesmo ângulo que a criatura na minha frente. Olhamos uma para a outra, mas o rosto mascarado só transmitia uma neutralidade tranquila. Quem seria essa pessoa? A roupa da criatura, em preto e dourado, era longa e cheia de detalhes intricados, obviamente feita sob medida para o minúsculo ser humano que a vestia. Um chapéu preto enorme decorado com penas e um guarda-sol combinando com a roupa completavam o traje. Meia dúzia de curiosos tiravam fotos da mulher (embora eu não tivesse certeza desse detalhe), que se movia com graça, bem lentamente, fazendo pose, provocando a plateia. Qual era a dela?
Enquanto eu a observava, ela fechou o guarda-sol, colocou-o em pé na sua frente e colocou as duas mãos sobre ele, imitando a minha pose. Esse é o tipo de vínculo que se forma (com frequência) graças ao carnaval, realizado na cidade mais enigmática do mundo. E é por isso que eu sempre volto.
No fim do inverno, é fácil viajar para Veneza usando o programa de milhagem; já o hotel é preciso reservar com pelo menos seis meses de antecedência, pois o Carnevale é muito popular entre os europeus. A princípio, eu organizava a viagem num fim de semana prolongado _ uma noite voando e três na cidade _ o que significava que podia abusar e me hospedar num hotel de luxo, como o Gritti, o Londra Palace, ou o Ca' Pisani. Depois de vários anos, decidi esticar para uma semana, parando primeiro numa cidade próxima por alguns dias (as melhores são Pádua, pela arte e pela feirinha, Bolonha pela gastronomia e Vicenza _ a minha favorita _ pelo teatro em estilo grego projetado por Andrea Palladio). Eu sempre chego a Veneza de avião, pego o trem para a cidade em que vou me hospedar antes e então, relaxada e com as energias renovadas, pego o trem de volta.
Virei frequentadora assídua do Domus Orsoni, um hotel baratinho de cinco quartos numa fábrica de mosaicos histórica perto do bairro judeu, a oito minutos de caminhada da estação de trem. Os quartos são simples e bem decorados, com roupa de cama bege e uma única parede decorada com um mosaico; este ano, encontrei no meu banheiro um box revestido de azulejos dourados. O Domus Orsoni é o local onde levo quinze minutos para me transformar em Carlitos. Perto dele estão a loja de souvenires obrigatória, uma pequena ponte, uma padaria onde se pode admirar os padeiros preparando a massa, uma feirinha e, às vezes, um mercado de peixes perto do canal.
Em Veneza, eu costumo andar muito, fantasiada, olhando vitrines e observando as pessoas _ homens com chapéus de três pontas e sapatos com fivelas, mulheres de vestidos longos luxuosos _ e isso tem o efeito de uma droga sobre mim. Às vezes dou sorte e descubro lugares que vendem uma pizza gostosa, bem fininha, com carciofi (alcachofra), panini macios recheados de salada de atum e azeitonas verdes picadas, gelati sem corante (cuidado com o sorvete de pistache verde fluorescente!). Depois de tantos anos, já não me interesso mais pelos eventos organizados pela Secretaria de Turismo; prefiro passar o tempo entrando e saindo de lojas e outros lugares que chamam a minha atenção, conhecendo os moradores. O interessante é que, aqui, eu faço parte da experiência de outros visitantes.
Eu passei a esperar sorrisos e comentários em minhas andanças pela cidade: "Perfetto", "Complimenti", "Ah, Charlie Chaplin, bravo!". Sempre agradeço em silêncio, encarando as pessoas de uma forma que geralmente causa estranheza. Sorrio, toco meu chapéu, faço uma cortesia e, às vezes, algumas palhaçadas. Os sorrisos se alargam. Recebo pelo menos uma dúzia de pedidos de fotos por dia, geralmente com alguém ao meu lado, feliz de ter encontrado Charlie. Até crianças pequenas, que não conhecem ainda o astro, ficam hipnotizadas por essa figura pequenina de bigode. Quando encarno meu personagem, nunca falo. Quando as pessoas me fazem perguntas: "Française? Inglese? Italiana? (quase nunca dizem "Americana", já que somos minoria no Carnevale), Donna (Mulher)? Uomo (Homem)?", encolho os ombros, giro a bengala e sigo em frente.
O carnaval se originou na Idade Média; no século XVI, os mascherari (fabricantes de máscaras) já eram um grupo bem-visto. Suas criações permitiam que nobres e plebeus interagissem, amantes ilícitos se unissem e jogadores invisíveis perdessem e ganhassem dinheiro (o deboche era um tema comum da festa). Por volta de 1790, durante um período de declínio da cidade, o carnaval praticamente acabou. Ressurgiu várias vezes até que foi proibido pelo Partido Fascista de Mussolini na década de 30. A Prefeitura reinstaurou o Carnevale na década de 70 como parte de um plano de marketing do turismo, com forte patrocínio corporativo.
Uma das coisas que prometi a mim mesma este ano durante a festa foi degustar pratos sofisticados. Não muito longe da Piazza San Marco descobri o Al Covo, um excelente restaurante de frutos do mar ainda desconhecido dos turistas. Coloco o bigode no bolso (perto de um potinho de cola) me preparando para provar a minha massa com limão e carne de caranguejo, servida na carapaça do mesmo.
Não demoro muito para comer tudo e recolocar meu bigode no mesmo lugar. De olho na cesta de pães, não resisto ao impulso, pego dois garfos e os espeto em duas bisnaguinhas para imitar a dança de Chaplin em seu filme "Em Busca do Ouro", de 1925. Chuto os pãezinhos para longe, um de cada vez, bem ao estilo Rockettes de um jeito tão gracioso quanto minha imaginação me permite que, por um momento, é todo meu. Depois do almoço, caminho pela Piazza San Marco e me perco entre as ruas e praças próximas a ela. Há pessoas fantasiadas em todo lugar, assim como turistas/fotógrafos/curiosos para clicá-las. Nas praças, ruas e cafés, essa gente se exibe, brinca e faz pose, atraindo uma trovoada de flashes. De vez em quando, Charlie Chaplin dá uma de provocador e invade a foto alheia _ e já chegou a usar a bengala para desafiar cavalheiros de peruca e espada na mão. Esse tipo de intrusão gera um número ainda maior de cliques; só muito raramente sou recebida com os gritos de um fotógrafo mais exaltado interessado apenas nas fantasias tradicionais.
Muitos participantes se reúnem na escadaria da Ponte Accademia, que costumo cruzar a caminho da Coleção Peggy Guggenheim. Esse reduto da arte do século XX é conhecido pelas obras de Braque, Picasso e Kandinsky, entre outros, mas sempre paro diante da placa de mármore onde se lê: "Aqui jazem meus adorados bebês", em homenagem aos 14 cachorrinhos enterrados ali, perto das cinzas da própria Peggy. Ela foi a amante de um expatriado norte-americano que inspirou e deu apoio a alguns dos artistas mais talentosos dos anos 40, 50, 60 e 70. Sempre que vejo uma foto famosa dela, com seus famosos óculos em formato de estrela, penso no Carnevale. Charlie é uma criatura de hábitos em Veneza: todo ano é obrigatória a caminhada ao longo do Zattere, onde a multidão dá lugar à luz. Amplo, esse calçadão foi construído no século XVI como doca de atracação. Quando o ar está gelado e as ruelas mais estreitas da cidade se escondem nas sombras, o Zattere brilha com os raios do sol. É ali que também ficam vários restaurantes, doceiras e sorveterias e o supermercado Billa, que vende os ingredientes perfeitos para um bom piquenique: vários tipos de queijo, manteiga fresca, iogurte, salame, biscoitos e pão. Mais de uma vez vi pombas caminhando pelos corredores _ refugiadas da Piazza San Marco, talvez?
Charlie também sempre anda de vaporetto (ônibus aquático) à noite. No escuro, sob as luzes das ruas, a impressão é a de que as belas construções de Veneza sussurram: "Claro, somos ameaçados pelas marés, a poluição e as condições do tempo, mas veem como somos orgulhosos e resistentes? Até agora, conseguimos sobreviver". Sob vários aspectos, é uma experiência emocionante para Carlitos, que também é um sobrevivente. Quase toda noite, na minha fantasia, fico sentada no Caffe Florian, ponto de encontro frequentado pelos festeiros mais elegantes e descolados, a maioria da França, Inglaterra e Alemanha. O Florian, inaugurado em 1720, é o palco perfeito, com murais delicados, em tons dourados, e mesas com espaço suficiente apenas para duas xícaras de chocolate ou duas taças de champanhe. Desta vez, porém, Charlie tem outras ideias; ele está achando o Florian muito clichê e quer participar de um dos exclusivos bailes de máscaras. Sempre me recusei a fazê-lo não só por causa do custo (mais de US$ 350), que me forçaria a ficar mesmo se quisesse ir embora mais cedo. Além disso, acho que o ambiente não condiz com Carlitos. (Não é verdade; ele vai a uma festa chique em "Luzes da Cidade".)
Charlie, porém, leva a melhor. Sua escolha: um minueto realizado num salão dourado cheio de espelhos do Hotel Danieli. O ingresso dá direito a um jantar, aulas de dança e música de câmara ao vivo. Ao redor da mesa de jantar, uma centena de pessoas em trajes elaborados conversa baixinho enquanto exibe suas boas maneiras à mesa. Entre um prato e outro, os participantes aprendem a dançar o minueto com uma trupe de dança italiana. Muitos exibem a postura adequada _ elegantes, eretos _ detalhe que não parece fazer parte da vida diária. Sem dúvida, não parece o século XXI. A diversão desse pessoal é atemporal.
"Acho que todos nós buscamos aquela elegância do passado", diz uma mulher sentada à minha mesa num vestido de seda lilás de decote pronunciado. Nossos companheiros concordam, balançando a cabeça. Bebemos vinho à luz de velas e, depois, dançamos devagar, graciosamente. A noite voa. Já é meia-noite quando me dirijo ao Florian (é difícil se livrar de velhos hábitos). O lugar está lotado e quem está na fila de espera se mostra impaciente. Depois de dez longos minutos de empurrões, sem poder chamar a atenção do porteiro (se tivesse me visto, com certeza teria me deixado entrar), recebo uma cotovelada nas costelas de um "deus grego" que não parava de repetir "Permesso, permesso" _ com licença _ que se dirigia para a porta. Não digo nada, retribuo a cotovelada e deixo a multidão para trás. Com pena de mim mesma, caminho devagar pelas minhas ruas favoritas perto do teatro Fenice e passo por uma mulher numa fantasia multicolorida. Mostro minha aprovação silenciosamente e sua gratidão é visível. Então, ao ouvir vozes, me apresso e entro numa viela minúscula onde encontro três homens de sobretudo e perucas imensas cantando uma ária a cappella. De frente para eles, levanto a bengala e brinco de maestrina. Suas vozes se levantam, mais animadas. Várias pessoas tiram fotos. Os cantores puxam Charlie para mais perto, para sair na foto _ e, por um segundo, me ocorre que esse cenário de rejeição e redenção é o mais chapliniano que já vivenciei.
Na manhã seguinte, ao nascer do sol, de bengala na mão e fantasia na bagagem, caminho até o vaporetto rumo ao aeroporto. Passo pela feira de peixes, onde vejo camarões, caranguejos e filés de peixes que não reconheço. Numa bandeja estão várias enguias gordas. Vejo que pelo menos uma delas ainda se mexe e penso que, talvez, como provavelmente Chaplin faria, eu devesse jogá-las de volta na água e sair correndo. Numa coincidência cósmica, o peixeiro era a cara do grandão de bigode que sempre atazana o pobre Carlitos nos filmes. Eu deixo as enguias no mesmo lugar.
No vaporetto, aproveitando meus últimos minutos em Veneza, vejo na água os movimentos tranquilos de um gondoleiro que se inclina para frente para se movimentar melhor. Instintivamente meu corpo faz o mesmo e já começo a pensar no meu próximo Carnevale. Aí noto uma jovem asiática me encarando, olhando para a minha bengala. Com um sorriso de descoberta, ela se reclina no assento e me diz: "Você é o Charlie Chaplin".
Mesmo livre para falar, prefiro só sorrir.
(A editora Sheila Buckmaster e Charlie Chaplin pretendem participar do Carnevale em 2013.)
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