Organiza
o Natal
(Carlos
Drummond de Andrade – (Texto extraído do
livro “Cadeira de Balanço”, Livraria José Olympio Editora – Rio de Janeiro,
1972, pág. 52.)
“Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente
embora, o resto é Natal.
É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta:
10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito.
Então parece absurdo
imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano
inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações
enfadonhas ou malignas.
Será bom.
Então nos
amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de
uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de
nylon sem cortinas.
Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos,
marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade.
Os objetos se
impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da
crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada
ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o
vestido de baile.
E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma
chave para o mundo.
Completado o
ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos,
isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma.
Não haverá
mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio.
O correio só
transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que
noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura,
inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso.
A crítica de
arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho
cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.
A poesia
escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer,
despojando-se do uso do som.
Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo,
mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira
de um livro.
A música
permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e
divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.
Com economia
para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas,
repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie.
Uma palavra será
descoberta no dicionário: paz.
O trabalho
deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a
jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo.
Salário
de cada um: a alegria que tiver merecido.
Nem juntas de conciliação nem
tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.
Todo mundo
se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de
doces, para visitas.
Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior,
outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.
A morte não
será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite,
como já compreendera a da manhã.
O mundo será
administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem
das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.
"E será Natal
para sempre."
http://ebooksgratis.com.br/category/livros-ebooks-gratis/literatura-nacional/poesia-nacional/page/2/
Nenhum comentário:
Postar um comentário